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O papel do RD

Claudemir Oribe - Mestre em Administração e Sócio Consultor da Qualypro

20/02/2007

Introdução

A popularização da certificação de SGQs [1] vem exercendo sobre o ambiente organizacional alguns impactos nos processos, rotinas e procedimentos internos. Poucas alterações no entanto, tem sido percebidas na estrutura organizacional que, via de regra, continua sendo a mesma após a implementação e certificação do SGQ. Das poucas alterações na estrutura organizacional há uma que ocorre invariavelmente em todas as organizações que adotam a ISO 9001 como referência para a gestão da qualidade: a inclusão do RD [2] na estrutura organizacional. Essa inclusão, dependendo do contexto em que é aplicado, pode ser feita por meio da criação de um novo cargo, função ou mesmo papel a ser desempenhado por uma pessoa com algumas características particulares. A organização também pode optar por ampliar as responsabilidades de algum cargo ou pessoa já posicionada na estrutura, visando garantir a realização de suas atribuições ao menor custo. Seja por inserção ou delegação, o RD sempre faz parte do “organograma”, até porquê se trata de um requisito normativo obrigatório. Independente da forma, a metáfora do “papel” se encaixa bem ao RD uma vez que atores são sempre atores, tal como cargos, o que muda é o papel que eles desempenham, de peça para peça (no campo teatral).

A atuação do RD pode influenciar e repercutir significativamente na forma com que a organização vê, considera, implementa e toma decisões sobre aspectos que estão relacionados ao SGQ. O seu entendimento, suas interpretações, conceitos, fundamentos e experiências, boas ou ruins, certas ou erradas, serão transferidos à organização que trabalha. As pessoas terão seu comportamento profissional alterado devido às escolhas, diretrizes e regras criadas decorrentes da implementação do SGQ. Discutir o papel do RD é assim um tema relevante. E não só devido ao impacto nas rotinas internas, mas também devido à sua influência sobre o potencial da organização de gerar e manter clientes satisfeitos e resultados operacionais.

Da mesma forma que o papel do ator, que se relaciona em como se dirige às pessoas e extrai delas uma reação, também atua o RD nas organizações. Seu papel é, acima de tudo, dirigido às pessoas, de diferentes níveis, especialidades, responsabilidades e posições na estrutura, para direcionar sua atuação e aumentar as possibilidades de sucesso no âmbito do sistema de gestão pertinente.

O sucesso do RD pode então ser determinado pelo grau em que as pessoas trabalham para o desenvolvimento da qualidade e satisfação dos clientes. Nessa ótica, uma organização coesa e voltada para as metas da qualidade seria um reflexo de um trabalho bem feito pelo RD. Por outro lado, um SGQ que depende fortemente do trabalho “braçal” do RD para que o sistema seja implementado pode indicar que seu papel não está sendo adequadamente desempenhado. Se o SGQ se parece mais com um “castelo de cartas”, bonito e elegante, mas que desaba ao menor abalo, isso indica um sistema pouco consistente, frágil e dependente da habilidade e esforço de poucos, quando não de um só, para se manter de pé.

Em contraste, se o sistema funciona mesmo diante de problemas ou na ausência do RD, as intempéries ajudam a fixar ainda mais os alicerces que sustentam o SGQ. Isso indica portanto, uma qualidade sólida, em que algumas pessoas podem chegam ao cúmulo de desejar que problemas aconteçam, só para apreciar o funcionamento do sistema diante de seus olhos, sem que nenhum esforço adicional precise se feito para isso.

Desenvolvendo/construindo o papel

O papel do RD pode ser moldado para que represente mais adequadamente aquilo que se espera dele. A definição deste papel, muito além daquilo que se descreve num manual de descrição de cargos, precisa ser planejado, concebido ou até idealizado para que sua missão institucional seja bem compreendida e assimilada pela pessoa que o desempenha e pela organização a qual pertence. A compreensão de sua importância para o sucesso de todos e de como se encaixa na estrutura, não só é fundamental para a própria organização, como facilita seu trabalho e interação com as áreas operacionais, aqueles a quem cabe satisfazer os clientes por meio dos produtos e serviços que desenvolve.

Então, se não é o papel do RD produzir qualidade diretamente, ele deve se colocar como função de apoio e a serviço daqueles que estão na linha de frente, trabalhando para que os recursos, processos, competências, diretrizes e outros aspectos relevantes e necessários sejam disponibilizados. O papel do RD passa então pela negociação e intermediação, quando a hierarquia não possui a argumentação adequada para a obtenção desses recursos visando minimizar as restrições que a realidade organizacional impõe a todos. Assim, a operacionalização do SGQ, na forma de controles e atividades de cumprimento de requisitos de registros para “garantir” o resultado da auditoria externa, representa uma limitação daquilo que realmente significa o papel do RD.

Outra tarefa que também restringe o papel do RD é a cobrança sistemática pelas ações que estão previstas em procedimentos. Uma vez que a execução das rotinas está nas mãos das gerências, cabe a elas também planejar e fazer com que tudo funcione como planejado. Afinal o papel do RD, salvo situações particulares, não se constitui em poder paralelo que conflita com a hierarquia. O poder está nas mãos daqueles a quem a organização delegou, e cabe ao RD atuar sobre este poder constituído para que os resultados apareçam, nunca cobrar devoluções de documentos, preenchimento de formulários e tarefas operacionais do gênero. Muitas organizações esperam que os RDs se debrucem sobre o trabalho, sobretudo às vésperas de auditorias, e façam em poucos dias tudo aquilo que não foi feito em meses. O papel do RD porém, não inclui atos heróicos, mesmo porque ele não é dotado de super-poderes. Aliás, a ação emergencial mina seu trabalho e fortalece a impressão de que tudo pode ser preparado na última hora. O RD não pode, portanto compactuar com a omissão de gerentes. O corre-corre de última hora não deveria ser feito para criar um resultado irreal e maquiado, para o bem da gestão da qualidade e para o bem de todos. Aliás, outro cuidado que o RD deve ter ao exercer seu papel é o de não compactuar com soluções eticamente duvidosas, propostas por gerentes desesperados diante da possibilidade de serem mal avaliados em auditorias. A contribuição que dá ao proteger esse tipo de atitude pode ser fatal para sua credibilidade, pois contraria tudo o que se espera da pessoa, do papel, do profissional, da qualidade e da gestão. Mesmo o uso de “vista grossa” pode indicar omissão e concordância, com conseqüências irreversíveis no comportamento das pessoas.

Se o papel do RD não se assemelha a um papel de execução ele deve ser ajustar sua atuação numa perspectiva de consultoria interna, desenvolvendo competências para a intervenção e habilidades para o gerenciamento de projetos, gestão estratégica e negociação, esta última em todos os sentidos. Afinal convencer acima, abaixo e lateralmente compreende aspectos diferenciados que não podem ser negligenciados.

Também o conhecimento amplo das técnicas e métodos que integram o universo da gestão da qualidade é fundamental, uma vez que a todo o momento o RD lida com desafios e faz ou aconselha escolhas para vencê-los. Assim, como um extenso leque de opções a utilizar o RD pode lançar mão daquela mais adequada para a situação, evitando empregar a mesma solução para problemas distintos. Essa condição é muito bem ilustrada quando se observa os conhecimentos e habilidades necessárias para a obtenção de certificado de Gerente da Qualidade da American Society for Quality - ASQ [3]. Enquanto no Brasil a prática comum é o conhecimento da norma ISO 9001 e alguma experiência anterior na implantação de SGQs, nos EUA a certificação profissional do gerente da qualidade (Manager of Quality/Organizational Excellence – QME/OE) inclui cultura organizacional, gestão da mudança, teorias de motivação, gestão da cadeia de suprimentos (Supply ChainMmanagement), sem falar nas diversas técnicas e métodos de gestão da qualidade e da administração geral. Esse grau de exigência talvez coloque poucos profissionais brasileiros em condições de obter a certificação da ASQ e pleitear uma função de RD em solo americano. Num contexto de globalização em que vivemos hoje, este é um assunto para ser pensado com seriedade.

O interessante também é o fato do RD não poder se basear em nenhuma outra função interna para servir de referência para moldar seu papel e balizar suas ações. Enquanto que as demais funções organizacionais têm regras, metas e domínios mais definidos além de uma atuação verticalizada, o contorno do papel do RD é mais abrangente, envolve uma atuação em todos os sentidos e as metas são indiretas, pois são balizadas a partir de resultados alheios. Isso faz com que sua atuação seja menos controlável e autônoma e que o tempo necessário para ajustar seu desempenho seja razoavelmente longo. É importante que as pessoas que cumprem a função de RD tenham consciência desse processo, pois poderão se frustrar ao perceber que suas orientações sofrem a inércia da estrutura e demoram uma eternidade para ser seguidas e fazer efeito.

O perfil político pode também ser importante ao RD, uma vez que os gerentes com os quais interage têm outras metas, desafios e restrições próprias. Alguns dos objetivos podem até serem conflitantes ou de difícil conciliação no campo técnico, estrutural ou psicossocial com os objetivos da qualidade. Discutir os objetivos da qualidade com outros objetivos organizacionais ou departamentais faz parte do papel do RD, para garantir seu cumprimento e contribuir com seus pares na consecução de seus próprios desafios. A criatividade gerencial é a solução para garantir a conciliação dos objetivos e a obtenção de um entendimento de que a gestão é um processo cujas variáveis constituem um conjunto holístico.

 

Conclusão

A organização possui diversas funções em sua estrutura. Enquanto que em geral elas possuem atuações verticais, o papel do RD tem uma atuação multi-orientada além de responsabilidades de natureza técnica, política, interna, externa, estratégica, tática e eventualmente até operacional. O RD inevitavelmente influencia, ou ao menos deveria influenciar, a forma que a organização busca e atinge resultados, por meio de seu conhecimento em normalização, métodos de gestão, instrumentos e ferramentas da qualidade, gestão de projetos, processos organizacionais, modelos de gestão e a própria natureza do negócio em que está inserido. Além disso, suas atribuições requerem habilidades de negociação, motivação, comunicação, liderança e gerenciamento, sem o qual seu conhecimento por maior que seja se tornará inútil.

A concepção do papel do RD nas organizações deveria transcender a descrição funcional para incluir um desenho mais amplo que não tem paralelo na estrutura organizacional. A conseqüência disso é o desenho de um papel mais parecido com o do consultor interno. O nível de responsabilidade pode e deve ser proporcionalmente mais elevado, o que restringiria o acesso a pessoas menos qualificadas e menos ousadas. Suas competências e remuneração deveriam ser discutidas com mais profundidade, para incluir incentivos que estejam de acordo com o potencial de desafios que seu papel representa. Somente dessa forma o papel do RD pode ser valorizado e a gestão da qualidade deixar de ter o papel marginal na gestão organizacional, como infelizmente se constata com certa freqüência no Brasil.

Cabe, portanto à organização e ao próprio RD discutir, desenhar, propor e negociar sua atuação junto à organização em que trabalha, buscando alinhar seu papel aos desafios organizacionais presentes no ambiente corporativo. À medida que faz isso, ele estará não apenas ampliando suas perspectivas de crescimento e desenvolvendo sua carreira, mas também trabalhando para inserir sua atividade num plano mais estratégico e menos normativo. O RD pode e deve ousar mais. Isso começa com uma ampliação de sua competência e termina com um papel estratégico, de maior prestígio e remunerado de acordo com o impacto nos resultados que proporciona. O caminho entre essas duas realidades cabe a você construir e decidir segui-lo.

 

Notas:

[1] SGQs: sigla de Sistema de Gestão da Qualidade; “sistema de gestão para dirigir e controlar uma organização no que diz respeito à qualidade” (NBR ISO 9000:2000).

[2] RD: Representante da Direção; função exigida pela Norma NBR ISO 9001:2000 no elemento 5.5.2; pessoa designada e que tem a responsabilidade, entre outras, de assegurar a implementação dos processos necessários para do sistema de gestão da qualidade, permitindo a certificação da organização.

[3] Mais informações podem ser obtidas em www.asq.org - acessado em 19/11/2006.


Referência para citação bibliográfica: ORIBE, Claudemir Y. O papel do RD. Banas Qualidade, São Paulo: Editora EPSE, ano XVI, n. 178, março 2007, p. 30-33.

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