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O Futuro dos Sistemas de Gestão da Qualidade

Claudemir Oribe – Mestre em Administração pela Fundação Dom Cabral e Sócio Consultor da Qualypro. claudemir@qualypro.com.br.

06/08/2009

Contextualização
A publicação da nova versão da ISO 9001:2008 acaba de acontecer. Além disso, a certificação de sistemas de gestão da qualidade completou 22 anos no Brasil. São dois acontecimentos que merecem destaque e celebração, mas também reflexão e análise.
Em 1990 estávamos vivendo os primeiros passos do amadurecimento da democracia. Era o início da era Collor e o confisco dos depósitos bancários das empresas e pessoas.

Economicamente, o país vinha da década de 80, aquela que viria posteriormente a ser chamada da década perdida. Após o milagre econômico, um surto de desenvolvimento que foi bruscamente interrompido pela crise do petróleo em 1973, o país estava buscando os primeiros passos para sua soberania e lentamente se preparando a transição política. Os investimentos no entanto arrefeceram e o país caiu numa profunda crise política e econômica. Na década de 80 não havia dinheiro nem credibilidade institucional para a captação. A alta inflação desviava os preciosos recursos para o mercado financeiro, deixando o parque industrial obsoleto e ocioso. Um triste quadro num cenário global emergente.

A década de 90 foi bem diferente. Havia um grande otimismo no mercado devido às esperanças no novo governo. A globalização dava seus primeiros passos e o país se preparava para recuperar o tempo perdido. Os países desenvolvidos, preocupados com a expansão da oferta de produtos industrializados pelas nações em desenvolvimento, já começavam a se mobilizar para viabilizar a aplicação de barreiras não tarifárias para conter o avanço de produtos de má qualidade. Era o momento perfeito para a criação de uma norma internacional de sistemas da qualidade.

Fundamentação teórica da ISO 9001
Antes de nos ater ao futuro da gestão da qualidade, vamos entender sua base e origem. Se analisarmos a norma ISO 9001 frente às teorias da administração, podemos facilmente concluir que ela traz conceitos e métodos definidos predominantemente na Teoria Neoclássica e Estruturalista da Administração. Temas como autoridade e responsabilidade, a divisão do trabalho, formalização, a separação do planejamento da execução, o estabelecimento de metas e controle, a ênfase nos objetivos e resultados, eficiência e eficácia, moldam as organizações dentro de uma perspectiva mecanicista.

Autores como Fayol, Emerson, Gulick, Urwick e Weber (o pai da burocracia) teceram grande desses conceitos que hoje vemos na norma ISO 9001, desde sua primeira versão há mais de 20 anos. Não é por acaso que a formalização foi tão presente nos primórdios dos sistemas de gestão da qualidade, pois essa é uma das características mais marcantes da perspectiva das organizações vistas como sistemas racionais.

No entanto, alguns problemas advindos dessa concepção estruturada foram identificados desde a sua criação, apesar de não terem sido fortes o bastante para neutralizar sua adoção universal. A tendência de rigidez e inflexibilidade, o conflito entre a operação e a gerência, a redução da cooperação interdepartamental, a tendência à especialização com perda da visão sistêmica, o abandono dos fatores comportamentais e a priorização da conformidade frente ao resultado são apenas algumas das disfunções que vieram de carona nos úteis conceitos dos sistemas administrativos racionais.

É importante frisar, portanto, que a ISO 9001 ainda é predominantemente neoclássica e estruturalista, apesar dos esforços de redução da formalização. É uma fundamentação bastante comum e eficaz, mas não necessariamente moderna, pois remonta 70 anos de desenvolvimento da ciência aplicada da administração.

Tendências da administração ao longo dos tempos
Evidentemente, para prever o futuro, temos que compreender o que está acontecendo no presente. Para Chiavenato (2004) há um princípio evolucionário de que cada época desenvolve uma forma organizacional apropriada às suas características e exigências. Estamos assistindo ao crescimento vertiginoso das organizações, a globalização da economia e a internacionalização dos negócios, redução do ciclo de vida dos produtos, descentralização aguda, ampliação do conjunto dos stakeholders, a redução do papel do estado no contexto da sociedade, o aumento da concorrência que, entre outros aspectos, impoem profundas alterações nos negócios e mesmo na vida das pessoas.

Além disso, segundo o autor acima, a era pós industrial, para o qual nossa sociedade caminha, é caracterizada pela imprevisibilidade, descontinuidade e instabilidade. Isso nos dá uma idéia do que enfrentamos e do que poderemos vir a enfrentar no futuro.

Alguns insights sobre o futuro dos sistemas de gestão da qualidade
Se a tese de que os sistemas seguem de fato as características dos momentos organo-contextuais, alguns indícios poderão indicar o futuro dos sistemas de gestão:
  1. Aumento do relacionamento com o ambiente externo: a quantidade de variáveis e partes interessadas não pára de crescer. O impacto de produtos e processos tem sido questionado ultimamente de forma crescente, podendo até inviabilizar investimentos se não houver um relacionamento harmônico entre clientes, governo, sociedade e gerações futuras. As organizações, invariavelmente, terão que ampliar seus canais de comunicação, reforçando as atividades de pesquisa e levantamento de informações que a levem à desenvolver produtos, serviços e processos amplamente aceitáveis.
  2. Organização de rotinas ou estruturação de agentes de coordenação: a convivência de diversos sistemas de gestão tradicionais, como financeira, tecnologia e recursos humanos aos sistemas de gestão emergentes como o da qualidade, meio ambiente e saúde e segurança, aumenta significativamente a complexidade administrativa; os esforços para transformar o trabalhador num profissional multidisciplinar não serão suficientes para promover a integração de vários sistemas de gestão.
  3. Redefinição do papel da gerência: nesse ponto, a ISO 9001 ainda não é forte o suficiente para promover a colaboração tática e delegar o monitoramento dos processos e produtos aos gerentes. Apesar de não ser a intenção da norma, ela parece omitir a função gerencial ao saltar da responsabilidade da direção às funções de realização do produto; com muita freqüência os gerentes são omissos na implementação, manutenção e no desenvolvimento dos sistemas de gestão.
  4. Sofisticação das metodologias de trabalho: se as organizações desejam obter/atender resultados com seus sistemas de gestão elas terão que sofisticar mais a adoção de ferramentas e métodos de gestão. Os sistemas construídos para simplesmente atender a norma não terão fôlego para a obtenção de melhorias contínuas, como requer o ambiente competitivo e a própria norma. Instrumentos adicionais, como MASP, análise e tratamento de riscos, gestão de competências, métodos de avaliação de treinamento, desdobramento estratégico e muitos outros, devem ser consideradas para complementar o esqueleto formado pela estrutura da ISO 9001.
  5. Adoção de mecanismos de reorganização estrutural e funcional: o conceito de gestão por processos, da forma como sendo empregado, não está agregando valor às organizações; um mecanismo de ajuste estrutural e funcional, para fazer frente à dinâmica competitiva, cairia como uma luva nos anos seguintes; mais papéis em detrimento às descrição de cargos, mais competência em detrimento às qualificações; no campo estrutural, mais processos chave em detrimento à departamentos.
  6. Redescoberta da ação preventiva: para melhorar seu desempenho organizacional por meio de sistemas de gestão, os profissionais terão que avaliar melhor a forma com que vem implementando as normas auditáveis. Com a tendência crescente da aplicação de instrumentos de gestão de risco, as organizações têm que implementar a ação preventiva não como o último requisito da norma, mas como uma conseqüência do planejamento dos processos e da realização do produto, dentro portanto do capítulo 7.1 ou, no máximo, como saída do processo de projeto e desenvolvimento (elemento 7.3).
  7. Foco no resultado e menos no certificado: os problemas com auditorias ainda são uma pedra no sapato para os sistemas de gestão. Auditores mal preparados e mal pagos compõem boa parte das equipes de auditores, não apenas no Brasil, mas no mundo todo (ver Revista ISO Management Systems, vol. 4, no 3, ed. Maio/junho 2004, p. 15-17). A prática da autodeclaração de conformidade já é recorrente nos países desenvolvidos. A publicação da ISO/IEC 17.050 legitima essa possibilidade. Da forma que ainda são feitas algumas das auditorias de certificação, acredito que esquemas de certificação com auditores voluntários podem ser mais eficazes, e mais baratos, do que com auditores remunerados.
  8. Revisão dos processos de avaliação: não imagino daqui a 10 anos, no ano de 2020, um auditor de dirigindo à uma organização para verificar a conformidade de uma organização baseado nos mesmos procedimentos, métodos e técnicas utilizados hoje. As dúvidas conceituais se agravaram muito com a publicação da ISO 9001:2000 e o desgaste das relações auditor-auditado e a incerteza do resultado continuam sendo uma constante durante as auditorias. A análise crítica pela direção, por sua vez, ganhou mais forma e conteúdo, mas o comprometimento continua sendo a queixa número 1 dos representantes da direção. Se os processos de avaliação não acontecerem à contento, a ligação necessária para fechar o ciclo de melhoria ficará bastante restrita, comprometendo um dos alicerces da ação gerencial.
  9. E, finalmente, um tema preocupante, que é o resgate da credibilidde da certificação: Sinceramente, eu duvido que uma organização possa “comprar” um certificado ISO 9001. Mas, em alguns casos, o valor desse documento parece não corresponder à expectativa da principal parte interessada, que é o cliente. Além do mais, práticas copiadas à torto e à direito servem como método de gestão para a gerência como uma roupa emprestada de uma pessoa bem diferente: veste, mas incomoda ao ponto de querermos nos livrar dela. Quando uma empresa passa folgadamente em auditorias, porém não consegue satisfazer seu cliente, então ele, o sistema de gestão, se torna um fardo internamente e uma inutilidade para o mercado que, passa a questionar o valor da certificação, minando sua credibilidade. Essa talvez seja uma ameaça que, se não discutida e aprimorada, tem potencial para exterminar a certificação de sistemas de gestão como prática organizacional. E pressões para isso não faltam no ambiente interno.
Conclusão
Parece que o mundo hoje não é tão previsível como o de nossos pais. Há alguns anos atrás, o futuro era, na melhor das hipóteses, uma projeção cuidadosa do passado. A distribuição da responsabilidade social, o multilateralismo nas relações internacionais e a migração de investimentos em direção à Ásia contribuem para o estado de incerteza atual. Assim, o futuro não pode ser projetado, pois novas forças estão em ação no macro e mesmo no micro ambiente. Porém, os pontos fracos do modelo racional-mecanicista serão as sementes para o crescimento dos futuros sistemas organizacionais.

Ao contrário da inspiração mecânica newtoniana, hoje os modelos organizacionais são inspirados na física subatômica e química (Princípio da Incerteza de Heisenberg, Teoria da Relatividade de Einstein, Teoria do Caos de Lorentz). A desafio atual é transformar conceitos de uma natureza desconhecida em aprendizado e metodologias reprodutíveis no ambiente administrativo.

Infelizmente, esse ambiente não caminha para uma situação previsível e confortável. Mas, se forem absorvidas as novas tendências administrativas, teremos um novo ciclo de desenvolvimento e o interesse pela gestão da qualidade será renovado. Além do mais, as organizações precisam fugir da tendência ao isomorfismo organizacional, desenvolvendo maneiras próprias de gerenciar seus produtos, processos, pessoas e seu negócio e principalmente, ter muito cuidado com soluções que deram certo em outros contextos.

Analisando os elementos acima e a recente ISO 9001:2008, vemos que ainda falta muito para a norma consiga passar conceitos administrativos às organizações. Já que os mecanismos de certificação não são suficientes para isso, resta à própria organização analisar seu sistema de gestão da qualidade frente aos princípios e modelos básicos da administração. Sem isso, as organizações correrão o risco de perder a noção de utilidade de um sistema de gestão da qualidade e sua credibilidade estará seriamente comprometida. Se isso vier a acontecer, será o fim do mecanismo de certificação de sistemas de gestão.

Bibliografia

1. MORGAN, Gareth. Imagens da organização. São Paulo: Atlas, 1996.

2. SCOTT, W. Richard. Organizations –Rational, Natural and Open Systems. New Jersey: Prentice Hall, 1998.

3. LIEUTENANT – Gal. H. Lal. Re-engineering the ISO 9001:2000 certification process. Revista ISO Management Systems, Geneva, vol. 4, no 3, ed. maio-junho 2004, p. 15 17.

4. CHIAVENATO, Idalberto. Introdução à teoria geral da administração:uma visão abrangente da moderna administração das organizações, São Paulo: Elsevier, 2003.

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