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Departamento de Honestidade

Claudemir Oribe é mestre em Administração pela Fundação Dom Cabral e Sócio da QualyPro – claudemir@qualypro.com.br - (31) 3391-7646

05/08/2009

A questão sobre a responsabilidade pela qualidade é um dos temas recorrentes no estudo e na prática da gestão desde que essa sub-divisão da administração foi criada. Muito provavelmente, todo profissional da qualidade já esteve às voltas com essa discussão, sobretudo no momento da análise de problemas. Esses são verdadeiros órfãos, pois nascem e crescem, sem que algum responsável se apresente para assumir a paternidade.

Do ponto de vista da teoria da administração, a responsabilidade normalmente discutida é a do gerente que, para efeito de análise, pode ser o gestor, proprietário ou aqueles que detém o poder e a quem cabe a administração do negócio. No caso do homem profissional, a responsabilidade é uma disciplina do campo sociológico e mesmo psicológico, uma vez que, a maneira que cada indivíduo lida com isso, é bastante particular.

A responsabilidade existe no ambiente de trabalho, por que a realidade humana é mutante, mesmo dentro de contextos de pouca mudança. O pensamento, a consciência, a compreensão do mundo que o rodeia se alteram a cada minuto, fazendo com que o indivíduo reformule o entendimento de seu papel, com reflexos perceptíveis no comportamento. Aliás, tentativas de controlar o comportamento humano são o cerne de muitos dos estudos organizacionais e já existiam, muito antes da administração se tornar disciplina acadêmica. Sobretudo as correntes de pensamento organizacionais mais antigas, como a administração científica de Taylor ou a burocracia de Max Weber, tinham como objetivo velado o controle do comportamento do trabalhador. E mesmo naquela época, em que sindicatos e a sociedade não eram organizados o suficiente, haviam sérios problemas para que os trabalhadores aceitassem responsabilidades, mesmo restritas a poucas atividades. Charles Chaplin ilustrou bem essa situação no filme Tempos Modernos, ilustrando a desumanização do homem no ambiente produtivo.

O enquadramento de responsabilidades dentro de certos limites define uma função. Já as posições ocupadas pelas pessoas definem cargos. Muitas pessoas ainda não conhecem ou talvez não conseguem discernir a diferença entre cargo e função. Algumas funções podem ser exercidas por várias pessoas, que ocupam vários cargos. Um exemplo disso é a satisfação de clientes, que é uma função que pode ser exercida por várias pessoas, segundo o tipo de interação e o relacionamento com alguma parte que represente o cliente. A função é, pois, um conjunto de atividades necessárias para o desenvolvimento de uma missão específica. A função está relacionada à realização de algo, enquanto que o cargo à existência de um papel. A função se associa à operação enquanto que o cargo se associa a ocupação. E ainda, a função desenvolve um resultado enquanto que o cargo pode ser apenas preenchido. As organizações, departamentos, a estrutura, a estratégia e mesmos os cargos possuem, portanto, várias funções a serem cumpridas para os quais são necessários recursos, tempo, planejamento e disposição. Para compreender isso, podemos nos referir às empresas em fase inicial, quando as poucas pessoas, eventualmente até da mesma família, trabalham duro para fazer o negócio prosperar, executando uma série de funções sem, no entanto, pertencer a nenhum cargo. Ao contrário do cargo que dá uma conotação estática (meu cargo é...), a função possui uma dimensão dinâmica (minha função é fazer com que...).

Além disso, para facilitar a interação e gerenciar o agrupamento de pessoas, as empresas lançam mão da estrutura organizacional, criando divisões por função ou especialidade. Existem muitas formas de desenho de estrutura e quase sempre, a função da qualidade fica concentrada num componente do organograma.

Infelizmente, toda a estrutura de remuneração das organizações não se baseia sobre a função exercida, mas no cargo ocupado. As pessoas recebem por aquilo que são e não por aquilo que fazem. A dificuldade de acompanhar o desempenho e o clima de constante mudança restringem a prática da remuneração funcional e, consequentemente, sua adoção generalizada pelas organizações. Isso representa uma barreira ao desempenho de funções comuns, que não podem ser limitadas a qualquer tipo de divisão como cargos, departamentos ou áreas.

Diante dessa realidade, funções importantes da empresa do terceiro milênio, como a qualidade, continuam a serem cumpridas precariamente. Por outro lado, a criação de cargos e departamentos da Qualidade prejudica o desenvolvimento da função qualidade nas demais divisões internas, principalmente quando atua como herói, assumindo responsabilidades alheias e compactuando com a omissão e com a falta de compromisso.

As empresas e organizações precisam entender que a função da qualidade não é algo que possa ser dividida, mas sim compartilhada. Veja, por exemplo, o caso da ética, uma disciplina filosófica que estuda a conduta humana. O crescimento da consciência ética vem crescendo no mundo empresarial. Então, ao perceber este movimento da sociedade, uma empresa bem intencionada poderia decidir criar o departamento de ética na empresa, com a função de congregar e promover valores éticos! Ou então, imagine criar um Departamento de Honestidade na empresa! Isso evidentemente não funcionaria, pois haveria uma forte tendência a associar a ética ao departamento, ao invés de ser tratado como um componente individual holístico. Da mesma forma que a ética, a participação das pessoas na gestão da Qualidade não é facultativa, mas imperativa.

Não creio assim, que a departamentalização da função qualidade seja compatível com um mundo caracterizado pelo dinamismo, pela competição, pela incerteza, pelos ciclos de vida curtíssimos, pelas margens reduzidas e alta competição, pois essas condições exigem tipos de estruturas mais orgânicas, flexíveis e sistêmicas. Na verdade, os teóricos da qualidade sempre defenderam essa idéia, mas ela nunca foi tão verdade quanto hoje, pois os argumentos se acumulam na medida em que o tempo passa.

Numa empresa, apenas em poucos casos, é tão acentuada a confusão entre cargo e função quanto na gestão da qualidade. Apesar de algumas pessoas ocuparem cargos relacionados à gestão da qualidade, como Inspetores, Analistas, Gerentes e Auditores, a responsabilidade pela qualidade não é uma exclusividade desses cargos, mas sim uma função, que deve ser distribuída por todos os setores, departamentos e cargos da que compõem a estrutura organizacional.

Quando isso não ocorre, o sintoma mais típico é a omissão, cuja conseqüência é a ocorrência de problemas de toda natureza, sem que qualquer ninguém se julgue responsável, ou sequer relacionado com o fato. Numa situação dessas, as pessoas parecem esperar que alguém tome alguma iniciativa. E, também da mesma forma, os ocupantes dos cargos da qualidade, não fazem algo para se livrar da expectativa de que a iniciativa só cabe a eles. Isso só contribui para acomodar ainda mais as pessoas num padrão de comportamento omisso, gerendo frustração, isolamento e a falta de iniciativas que imobilizam a estrutura e enfraquecem o potencial de geração de resultados.

Os que ocupam responsabilidades na área da qualidade se frustram com o comportamento omisso generalizado, pois seus esforços pelo comprometimento não encontram eco na organização. A responsabilidade não assumida, e por ocasiões sequer conhecida, é uma conseqüência de um conjunto de variáveis que precisam ser melhor discutidas internamente. Sabermos que a qualidade é função de todos, mas suas práticas e atividades parecem sofrer um fenômeno de repulsão das áreas, que se manifestam na forma de folga social, rejeição da palavra “qualidade” e pela frequência com que possuem outras prioridades. O resultado disso é que as tarefas tendem, invariavelmente, a se concentrar nas pessoas que possuem cargos relacionados à Qualidade. O RD que o diga.

As pessoas parecem não querer admitir o fato de que o mundo hoje exige mais responsabilidades e que seu trabalho, qualquer que seja ele, é de natureza multidisciplinar. Estamos num caminho sem volta e os cargos nunca mais serão especializados como já foram, passando a acumular cada vez mais funções. Essa é a realidade. E a função da qualidade faz parte desse contexto.

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