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Mimetomania na Gestão da Qualidade

Claudemir Oribe é Mestre em Administração pela Fundação Dom Cabral e Sócio Consultor da QualyPro – claudemir@qualypro.com.br

21/04/2012

De maneira geral as organizações e mesmo os profissionais que nela trabalham, possuem uma forte tendência à adoção de soluções desenvolvidas por outros. A reprodução de soluções, mesmo que bem sucedidas e justificáveis, se apresenta em diversos níveis das relações socioeconômicas das quais fazemos parte. As conseqüências dessa prática generalizada e até mesmo institucionalizada, é que as organizações e pessoas tornam-se semelhantes em suas características básicas. Essa propriedade dá-se o nome de isomorfismo.

O isomorfismo é um conceito proposto por Hannan e Freeman (1977) no célebre artigo The Population Ecology of Organizations após observarem que as organizações parecem desenvolver determinadas características em função dos recursos existentes e da instabilidade ou estabilidade encontrada no ambiente. Apesar das organizações e suas práticas se apresentarem de forma mais diversa nos primeiros estágios do ciclo de vida, há uma forte tendência à homogeneização nos estágios subseqüentes.

DiMaggio e Powell (1983) identificaram três mecanismos que provocam mudanças isomórficas institucionais com conseqüências nas organizações: o primeiro seria o isomorfismo coercitivo que é o resultados de pressões formais e informais por outras organizações e entidades das quais a organização é dependente, como por exemplo o governo. Forças coercitivas também se formam por meio da expectativa social dentro do qual a organização funciona (Bertucci, 2000). O segundo é o isomorfismo mimético que é gerado a partir da incerteza, levando as organizações a responder de forma padronizada à um objetivo ou meta. Por fim, há o isomorfismo normativo, calcado sobretudo em padrões de comportamento ou práticas socialmente aceitas num grupo profissional.

Trazendo a questão para o âmbito dos sistemas de gestão, podemos encontrar os três tipos de isomorfismo convivendo em ambientes organizacionais certificados. Vale lembrar que não se trata de julgar ou condenar essa prática, mesmo por quê provavelmente muitas das soluções adotadas funcionam de verdade. Vamos apenas fazer uma reflexão, procurando constatações que possam nos levar a compreensão e, a posteriori, a identificação de novas formas de ação.

O isomorfismo coercitivo está sobretudo presente nos requisitos reguladores de agências ou órgãos governamentais, nos grandes clientes ou fornecedores e nas orientações corporativas em grandes conglomerados empresariais. Ao exigir o cumprimento de requisitos gerais, como a certificação de sistema baseado numa mesma norma, ou requisitos específicos como adoção de FMEA, CEP e procedimentos de ação corretiva, esses componentes sociais estão contribuindo para a uniformização de práticas de gestão. Essas forças são exercidas de fora para dentro, não estando portanto, sob o controle da organização.

O outro tipo de isomorfismo, o normativo, se apresenta pela pressão de agrupamentos profissionais na difusão das melhores práticas. A própria atividade de normalização força as escolhas dentre um conjunto menor de soluções, deixando um espaço pequeno para a inovação. No campo da pesquisa etnográfica, a observação dos fenômenos organizacionais contribui para a difusão de idéias bem sucedidas, mesmo num âmbito informal ou restrito como ocorre num Seminário ou Congresso. A oferta limitada de treinamento e formação na área da qualidade no Brasil tende a formar especialistas empíricos, com bagagem teórica bastante limitada, muitas vezes, dentro de um só contexto organizacional. A seleção de pessoal também contribui, mesmo de forma não deliberada, ao considerar candidatos que possuem experiência na atividade fim ou nas ferramentas da qualidade já utilizadas pela empresa. O fato se acentua quando, ao preencher um cargo em aberto, o RH devidamente assessorado pela hierarquia, se espelha nas características do ocupante anterior, contribuindo para o isomorfismo normativo. Tal situação talvez fosse até necessária, se a organização desejasse a manutenção de direção e resultados. A seleção de perfis comuns dentro de um quadro profissional específico, como é o caso da gestão da Qualidade, pode incorrer em enganos no processo quando a organização deseja mudanças e mesmo assim procura um profissional dentro dos requisitos de competência habituais. Isso também ocorre quando, um empregado recém promovido, repete as soluções de seu antecessor bem sucedido, procurando legitimar-se na função. Situações de conflito também levam ao isomorfismo quando a discussão é reprimida em função do interesse pela harmonia (Bertucci, 2000).

Se no entanto, as condições do ambiente interno e externo são incertas, as metas são ambíguas ou ousadas demais e os fatores sociais incompreendidos, uma força poderosa pode encorajar a imitação. Trata-se do isomorfismo mimético. Isso é comum na implementação de sistemas de gestão da qualidade quando há uma pressão pela certificação num prazo muito curto. Para cumprir essa meta, os profissionais da Qualidade que conduzem o processo tem que adotar soluções copiadas de outras organizações ou aquelas que os consultores trazem prontas, pois não há tempo para o desenvolvimento de soluções internas adequadas à sua necessidade. A incerteza provocada pela subjetividade do processo de auditoria também exerce a mesma pressão. É muito fácil imaginar e bastante comum encontrar nos momentos que antecedem auditorias, alguém lembrando de uma solução que outra organização adotou e que foi aceita pelos auditores numa situação específica. Esse tipo de raciocínio deixa à margem qualquer reflexão da efetividade da solução ao aplicar uma abordagem teleológica de curtíssimo prazo.

Podemos verificar a tendência da imitação em vários aspectos da implementação de sistemas de gestão. A política da qualidade é uma delas. Algumas políticas são bastante bem escritas, sofisticadas e refletem uma intenção sincera. Outras no entanto, não tem qualquer relação com a estratégia organizacional, pois foram redigidas a partir de exemplos de outras organizações, por meio de rearranjo das mesmas palavras, adaptadas ao contexto e com o cuidado de atender exatamente os requisitos da norma, nada mais.

Os modelos de procedimentos e formulários são também bastante parecidos. As adaptações feitas no formato não são suficientes para denotar à organização um caráter inovador. Um caso típico relevante é a adoção de modelos de documentos de grandes empresas por organizações de pequeno porte que, se feita sem critério, prejudica aquilo que essas organizações pequenas tem de melhor: a flexibilidade, a autonomia e a agilidade.

Talvez o melhor exemplo, e também o pior, de prática copiada é a ação preventiva. Inserida num desprestigiado último elemento da norma, a ação preventiva ainda padece do mal de estar associada à ação corretiva. Além das confusões habituais entre as duas técnicas, as organizações adotam uma prática comum de tratá-las num mesmo procedimento, às vezes até num mesmo formulário. Segmentos industriais que tratam a ação preventiva com seriedade, como é o caso do ramo automotivo, sabem que a metodologia para sua aplicação é completamente diferente. Além de ser localizada no início do processo, a atividade de análise, decisão e tratamento se assemelham mais à gestão de risco do que à ação corretiva. Visto pelo ângulo da lógica e da efetividade, numa perspectiva utilitarista, a ação preventiva deveria ser movida nas práticas gerenciais do item 8.5.3 para o capítulo 6 na gestão de recursos, ou ainda melhor dentro do capítulo 7, como parte do processo de planejamento da realização do produto.

As organizações brasileiras estão repletas de exemplos como este. Para citar mais alguns, temos a atividade de identificação de necessidades de treinamento e o formulário LNT, os procedimentos de planejamento e realização de auditorias que é praticamente idêntico em qualquer empresa, o manual da qualidade que não precisa nem ter o formato comum nem esse nome, as atividades e procedimentos que envolvem a responsabilidade da Direção que, de tão estruturados, padronizados e repetitivos conseguiram só reduzir ainda mais o interesse e o comprometimento dos gestores.

É claro que temos profissionais e organizações extremamente criativos no Brasil, permitindo até, em alguns casos, destaque no cenário mundial. Mas, apesar de não ter sido intencional quando da elaboração das normas de sistemas de gestão e não estar presente no conteúdo, o hábito de copiar soluções, replicar procedimentos e instrumentos e reproduzir práticas se transformou numa verdadeira mimetomania. O resultado disso é o comprometimento do processo de aprendizado organizacional, da inovação, da criatividade e do interesse pela qualidade.

Mesmo reconhecendo o importante papel de imitação para o desenvolvimento de uma indústria em seu momento inicial, trata-se de uma estratégia suicida em longo prazo. Se observarmos as organizações excelentes, veremos soluções inovadoras, adequadas, criadas para um propósito claro e considerando suas próprias variáveis determinantes. Conforme afirma Bertucci (2000) a ênfase da organização em estágios posteriores do ciclo de vida organizacional é o da eficiência, manutenção, conservadorismo e institucionalização. Então, a saída para a excelência é trabalhar contra essa tendência natural.

Os principais atores envolvidos em processos de certificação no Brasil deveriam incentivar e promover a inovação e o desenvolvimento de soluções novas para os sistemas de gestão. Auditores poderiam aproveitar seu potencial criativo, inibido por ocasião da auditoria, para incluir um papel de estímulo à criatividade e busca de novas idéias, melhorando sua relação com o auditado e sem abrir mão dos preceitos éticos que regem a atividade de auditoria.

O isomorfismo dos sistemas de gestão não elimina a necessidade da gestão da qualidade, mas enfraquece todo o sistema de certificação, uma vez que não haveria sentido certificar processos que são sabidamente iguais ou semelhantes. Se a questão é traçar os caminhos para a excelência empresarial, comecemos revendo a forma com que fazemos as coisas. O quê, por quê, como, onde e, principalmente, para quê as coisas são feitas, são questões que precisam urgentemente de respostas novas. Pois como disse Albert Einstein: "Não há nada que seja maior evidência de insanidade do que fazer a mesma coisa, dia após dia, e esperar resultados diferentes".

Bibliografia:

1. HANNAN, M.T.; FREEMAN, J. H. The population ecology of organizations. American Journal of Sociology. v. 82. n. 5. p. 929-64, 1977.

2. DI MAGGIO, P. J. & POWELL, W.W. The iron cage revisited: institutional isomorphism and collective rationality in organizational fields. American Sociological Review, 48(2):147-60, 1983.

3. BERTUCCI, J. L. O. Efetividade organizacional em Instituições de Ensino Superior: as PUCs brasileiras em busca de efetividade. 2000. 393p. Tese (Doutorado em Administração). CEPEAD, FACE, Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte. Capítulo 3: Efetividade organizacional: um constructo complexo.

Referência para citação bibliográfica:

ORIBE, Claudemir Y. Mimetomania na Gestão da Qualidade. Banas Qualidade, São Paulo: Editora EPSE, ano XV, n. 163, dezembro 2005, p. 30-32.


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