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Como auditar competências

Claudemir Oribe é mestre em Administração pela Fundação Dom Cabral e Sócio da QualyPro – claudemir@qualypro.com.br - (31) 3391-7646.

21/09/2006

Quem trabalha com sistemas da qualidade na época das versões 87 e 94 da norma ISO 9001, talvez se lembre da simplicidade quase ingênua do capítulo 4.18 – treinamento. Apesar de contemplar esta importante atividade para a constituição de um sistema da qualidade, aquelas versões exigiam apenas que a organização identificasse, realizasse e registrasse os treinamentos necessários. Era um requisito fragmentado, sem amarração com a estratégia corporativa e com os resultados esperados da qualidade. A ISO 9001 daquela época contribuía para o isolamento da área de RH, mantendo esta alienada da atividade fim.

De lá para cá, esse “gap” entre função desejada e desempenhada pelo RH tem sido intensamente questionado. As indagações inicialmente externas sobre o papel do RH para o desempenho organizacional passaram a ser feitas pelos próprios profissionais dessa área, criando uma verdadeira crise de identidade sobre sua missão nesses tempos tão turbulentos. Essa questão ainda não está totalmente resolvida.

Uma das alterações mais felizes que a versão 2000 da norma ISO 9001 trouxe foi o conceito de competência. Naquela época o tema já era emergente e, num ato de ousadia e pioneirismo, o TC 176 aprovou a versão, o que alterou significativamente o papel do RH para o sistema de gestão da qualidade. O papel, antes desconexo e marginal, passou a ser relevante, uma vez que não só os requisitos aumentaram, mas um conceito foi introduzido e a conexão com a eficácia do sistema de gestão da qualidade e com a satisfação dos clientes foi finalmente estabelecida.

O que ninguém provavelmente previu, foi que essa alteração necessária e bem intencionada iria dificultar o processo de auditoria. Talvez não exista na ISO 9001 um requisito em que a forma de auditoria varie tanto de auditor para auditor. O resultado disso é confusão, incerteza e temor por parte do auditado, ditos e não ditos, sugestões equivocadas e uma freqüente sensação de frustração pelos profissionais de RH.

O primeiro aspecto a alertar é a natureza diferenciada dos recursos humanos em relação às demais áreas compreendidas pelo modelo de sistema de gestão da qualidade da ISO 9001. O RH faz parte do campo de estudo da administração, que é oriunda das áreas da sociologia, psicologia e economia. É, portanto uma ciência social aplicada. Já a precisão estatística necessários aos controles da qualidade tem sua origem na precisão matemática, da física e da engenharia. Trata-se de derivações das ciências exatas, também denominadas ciências puras ou ciências normais. Acadêmicos mais radicais dessas ciências chegam a afirmar que as ciências sociais não deveriam nem sequer ser denominadas de ciências, uma vez que não consegue explicar nem reproduzir com precisão os fenômenos de estudo. Trazendo essa questão para a auditoria, um grande erro ocorre quando os critérios empregados para medir, classificar e retrabalhar peças e produtos são trazidos para o campo das pessoas. Essa transferência não é apenas conceitualmente equivocada, mas também inútil, pois o RH assim como todas as ciências humanas trabalham com uma realidade mutante. A intervenção sobre uma eventual não conformidade na área de RH não só não garante a melhoria, como pode também agrava-la. Ações corretivas são mais cuidadosas pois o “produto” é muito sensível à intervenção. Não fazer nada é portanto sempre a primeira coisa a ser considerada, o que é impensável para um produto.

O auditor que se dirige ao RH deve trocar seu chapéu ao auditar a área, adotando uma postura apropriada à discussão no campo humano. Isso não quer dizer necessariamente abrir mão do rigor, mas apenas compreender as restrições, variabilidade, ambigüidades e diversidades que são inerentes às ciências humanas. Essas características estão presentes mesmo nas equipes de auditores que compõem os organismos de certificação credenciados (OCCs).

Nessa ótica, o processo de auditoria deveria ser executado como uma forma de verificar como ela dispõe e prepara as competências para os desafios da qualidade e como ela aprimora seus processos para facilitar a consecução dos resultados desejados. Diante disso, a prática de colher nomes de empregados para verificação pontual pode não ser uma prática produtiva, por não permitir uma verificação do RH como processo, se restringindo às ações e registros particulares da amostra coletada. A auditoria na área de competências não pode ser feita por rastreabilidade, pois trata-se de um processo que contém interpretações e conceitos aplicados, como um processo estratégico. Da mesma forma que não teria sentido colher uma ação qualquer que tenho sido implementada e buscar sua ligação com a estratégia, tem também pouca utilidade tomar nomes de pessoas e levar ao departamento de RH para verificar se as competências são bem gerenciadas na empresa. Melhor seria investigar como o processo de competências se desenrola em seu fluxo normal, as considerações feitas, a interpretação que a organização fez dos requisitos e a maneira que determinou as competências necessárias visando um alinhamento com a política e objetivos da qualidade. Ressalto ainda outros aspectos que são alvos constantes de interpretações bastante duvidosas:

  1. Para a ISO 9001 a competência possui 4 dimensões: educação, habilidade, experiência e treinamento. É interessante que os três primeiros são de fato componentes de competência. Já o treinamento é um processo para prover a competência. Assim, uma das dimensões da competência, na verdade não é uma vez que ninguém define que uma pessoa é competente porque tem uma lista de treinamentos em seu currículo, mas pelos conhecimentos que possui. Isso sim seria uma dimensão da competência, mas omissa na norma. Outras dimensões da competência são: as aptidões (atributos físicos, por exemplo), os traços de personalidade (características inatas) e as atitudes que configuram o comportamento do indivíduo. As empresas que necessitem definir esses requisitos para funções específicas devem incluí-los em seus sistemas de gestão. O medo de ampliar requisitos, e com isso “dar pano pra manga” para o auditor, não deve ser a preocupação principal do RH, mas de prover competências realmente distintas para as funções chave da organização.
  2. Todo mundo tem lacunas de competência, inclusive auditores da qualidade. Os requisitos de competência nunca serão, portanto, totalmente cumpridos. Reduzir a quantidade de requisitos para que a empresa não receba uma não conformidade seria nivelar a competência por baixo, o que seria bom para o resultado da auditoria, mas ruim para a qualidade da empresa.
  3. Na medida em que todos possuem algum tipo de lacuna de competência, algumas competências podem ser desejáveis mas não obrigatórias. Muitas organizações estão “empobrecendo” descrições de cargo para suprimir requisitos de competência que aumentam a adequação do candidato na medida em que ele cumpre mais requisitos que não são absolutamente fundamentais. A existência de requisitos de competência desejáveis, uma prática normal para o preenchimento de vagas, estão cedendo lugar para um conjunto de requisitos mínimos que todo mundo tem, só para que o RH não tenha problemas na auditoria. Isso é mais um critério trazido do positivismo do controle da qualidade para a realidade fenomenológia dos recursos humanos.
  4. A habilidade é a dimensão de competência que gera mais dúvidas entre profissionais de RH e auditores. Isso provavelmente se deve ao fato de algumas descrições de cargo não distingui-las do comportamento e nem de traços de personalidade, colocando tudo “num balaio só”. As habilidades humanas são capacidades de realização relacionados ao seu sistema psico-motor. Enquanto o conhecimento, aptidões inatas e experiências são “reservas” para ser utilizados quando necessário, a habilidade é manifestada quando a pessoa consegue desenvolver uma atividade satisfatoriamente. A habilidade só pode ser manifestada quando alguém executa a tarefa (práxis). Ela precisa “saber fazer”. O conjunto de habilidades de uma pessoa é sua maior competência e por isso, é a principal dimensão de competência. Nada mais fácil de auditar do que pedir a alguém que faça algo diante de si. Por isso, os auditores devem parar de auditar papéis e auditar mais as pessoas, para comprovar a competência no momento de sua entrega.
  5. A eficácia das ações para prover competência, incluindo treinamento, não é uma variável discreta como insistem alguns auditores. Ao indagar os auditados se o treinamento foi eficaz ou não, os auditores reduzem uma variável contínua sujeita a enormes variações, para uma variável limitada a uma resposta “sim” ou “não”, um claro reducionismo na ótica das ciências sociais. Esse questionamento não tem respaldo na norma ISO 9000:2000 que define a eficácia como uma “extensão” não uma “condição” (ver definição de eficácia, item 3.2.14, página 11). A eficácia é, portanto um “nível” obtido sobre uma comparação numa escala. Todo treinamento será pelo menos um pouco eficaz desde que algum resultado possa ser observado. Só não será eficaz se nenhum resultado for obtido.
  6. Nem todos os treinamentos possuem uma alta correlação com os resultados da qualidade como se gostaria. Se fizéssemos um estudo sobre processos estáveis, provavelmente concluiríamos que o nível de correlação positiva entre alguns treinamentos e os indicadores da qualidade são muito próximos de zero. Essa constatação inviabiliza inclusive qualquer esforço de medição que se empreenda. Esse é, por exemplo, o caso de treinamentos em novas revisões de procedimentos e participações em congressos. Assim, os auditores devem ter cuidado ao cobrar avaliações sistemáticas de eficácia de todos os treinamentos. Mesmo porque o RH não possui pessoal disponível para isso. Seria muito mais útil se os auditores cobrassem critérios para escolha dos treinamentos que serão submetidos à avaliação, para separar o joio do trigo, e priorizar aqueles com alto potencial de melhoria de resultado.
  7. Na versão 1994 da ISO 9001, o capítulo sobre treinamento era auditado exclusivamente no RH. É fundamental alertar para o fato que a eficácia dos treinamentos com potencial de resultado não está dentro do RH, mas lá fora, nos indicadores operacionais e da qualidade, as quais o RH não possui uma ação direta. Assim, a eficácia dos treinamentos, ao menos daqueles com potencial de resultado, devem ser verificados nas próprias áreas com os gerentes e não dentro do RH, como fazem muito auditores. Auditar somente o RH é negar o caráter sistêmico da norma e acreditar na crença ingênua de que esse departamento tem capacidade direta de melhorar a organização apenas ministrando treinamentos.
  8. Quanto aos registros, alguns auditores ainda insistem em rejeitar o currículo como forma de comprovação de competência, afinal “papel aceita tudo”. Em primeiro lugar, uma auditoria de qualidade não é uma fiscalização que pretende verificar a autenticidade do que está escrito. Em segundo lugar, essa atitude despreza a capacidade do pessoal do RH de perceber por meio de entrevistas a mentira escrita. Temos que lembrar que mesmo qualificações verdadeiras não impedem que um candidato seja recusado, seja na entrevista, seja durante o período de experiência. Em terceiro lugar o TC 176 em seu International Certification Guidelines citou o CV como exemplo de registro da qualidade possível. O currículo é melhor e mais detalhado do que certificados, que nem sempre estão disponíveis. Muito melhor também do que cópia de carteira de trabalho, que menciona apenas o cargo e o período, deixando de mencionar quais atividades foram de fato desenvolvidas durante aquela experiência. Se o auditor não acredita no que está escrito num currículo, que cumpra seu papel, confrontando seu conteúdo com informações prestadas pelo próprio funcionário. Se assim o fizer, estará atestando a entrevista como forma de verificação, o que não poderia ser diferente.

Conclusão
A intenção deste artigo foi de contextualizar a competência numa empresa que utiliza a ISO 9001:2000 como referência para a constituição de um sistema de gestão da qualidade e apresentar os problemas que frequentemente acontecem em auditorias na área de RH. Não se deseja com as colocações aqui feitas criticar auditores, profissionais de RH ou gerentes operacionais, mas apenas dar subsídios para uma reflexão necessária ao melhor entendimento de conceitos para, não só melhorar a atividade de auditoria, mas para que se produzam melhores resultados para a organização. A falta de fóruns de discussão no Brasil acaba por deixar que diferenças conceituais co-existam, o que confunde as pessoas, provoca atritos e reduz a contribuição deste importante requisito para a melhoria do desempenho organizacional. É importante, pois que os conceitos convirjam para um entendimento comum e que o conceito de competência possa ser utilizado da forma que um método de gestão contemporâneo merece.

Referências:

ORIBE, Claudemir Y. Avaliando o treinamento. Banas Qualidade, São Paulo: Editora EPSE, ano XI, n. 123, Agosto 2002, p. 53-55.

ORIBE, Claudemir Y. A Hora e a Vez da ISO 10.015. Banas Qualidade, São Paulo: Editora EPSE, ano XIII. n. 141, fevereiro 2004, p. 24-28.

ORIBE, Claudemir Y. Não agüento mais auditorias! O que está errado e como melhorar. Banas Qualidade. São Paulo, nº 167, abril 2006, p. 64-65.

ORIBE, Claudemir Y. Como auditar as competências. Banas Qualidade, São Paulo: Editora EPSE, ano XVI, n. 173, outubro 2006, p. 34-37.

ORIBE, Claudemir Y. Papéis e responsabilidades para o sucesso [do treinamento]. Banas Qualidade, São Paulo: Editora EPSE, ano XVI. n. 179, abril 2007, p. 42-46.


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