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A Hora e a vez da ISO 10.015

Claudemir Oribe - Mestre em Administração e Diretor de Projetos da QualyPro

18/02/2004

Introdução

Conforme comentei em minha última matéria nesta mesma revista (ver BQ agosto/2002) são muitos os problemas que enfrentam os profissionais da área de treinamento para desenvolver e treinar pessoas. Na oportunidade listei 20 problemas que considero mais comuns em atividades de treinamento. A ocorrência desses problemas pôde ser verificada após contato com cerca de 400 profissionais da área de T&D (Treinamento & Desenvolvimento) em diversos eventos de diferentes magnitudes.

Pois bem, falando agora de soluções para tais problemas, acredito que esses profissionais podem dizer que suas preces foram finalmente ouvidas. Trata-se da publicação da NBR ISO 10.015 – diretrizes para o treinamento.

Apesar da norma ter sido publicada o Brasil há anos, ainda é bastante grande o número de pessoas que desconhecem sua existência, recomendações e os benefícios de sua implantação num departamento de T&D ou RH.


Histórico

Inicialmente, a idéia de se produzir uma norma na área de treinamento, não é uma idéia nova. Ela nasceu há mais de 10 anos, no início de 1992 quando a delegação sul-africana no TC-176 propôs sua criação para compreender melhor os requisitos da ISO 9001 referente ao treinamento. A norma em vigor então, era a versão 1987.

Provavelmente, já se percebia desde lá a fragilidade e superficialidade dos requisitos de treinamento, que foram infelizmente mantidos na versão de 1994. Vencidos os trâmites para o desenvolvimento de um documento normativo, criou-se o grupo de trabalho (WG 4) alocado ao Subcomitê 3 (SC 3) – Tecnologias de suporte. A primeira reunião do WG4 aconteceu na Hungria em setembro de 1993, há dez anos, portanto, com a presença de representantes de 20 países.
Seis anos depois, após muitos drafts e discussões, foi aprovada por grande maioria a publicação da ISO 10.015 – Quality Management – guidelines for training, na reunião do ISO/TC 176 em São Francisco – USA. A versão brasileira foi publicada no Brasil pela ABNT com a denominação NBR ISO 10.015 – Gestão da qualidade - Diretrizes para treinamento, em 2001.


Descrição

O texto final aprovado é muito claro, limpo e sintético com frases bem diretas e concisas sobre o tema. Essa objetividade ajuda bastante o leitor/usuário na compreensão dos requisitos e em seu uso para adoção completa ou como fonte de referência para a redação de trechos de procedimentos de treinamento.

A norma se divide em alguns capítulos que tentarei descrever e comentar a seguir.


Capítulo 0 Introdução

Aborda aspectos referentes a princípios da gestão da qualidade e a importância das organizações em treinar seus empregados num mundo em constante mutação. O capítulo fornece indicações de aplicação, reforçando sua utilidade para prover orientação à interpretação de referências de treinamento e educação nas normas da família ISO 9000.

O capítulo aborda também a possibilidade de análise das necessidades de competência a partir das exigências de melhoria contínua impostas pelo mercado.
Fechando o capítulo, um diagrama, mostrado a seguir, isola o treinamento de outras necessidades da organização e indica orientações para identificar e analisar as necessidades, projetar e planejar, executar, avaliar e monitorar e melhorar o processo de treinamento.





Figura 1: problemas pertinentes ao treinamento


Capítulo 1 Objetivo

Reforça o objetivo da norma em prover diretrizes para o desenvolvimento, implementação, manutenção e melhoria das estratégias e dos métodos de treinamento que afetem a qualidade dos produtos.

Aqui se encontram as indicações sobre aplicação e finalidade da norma. Um detalhe neste capítulo diz respeito ao propósito de certificação, que não se aplica. Há porém, pelo menos um organismo no mundo já credenciado para a certificação da ISO 10.015 que é a Adequate da Suíça (www.adequate-international.org). Iniciativas como essa poderão desencadear uma evolução no texto, incentivando a certificação dos departamentos de treinamento. Afinal, a certificação é um processo universal aceito por praticamente todos os países do globo, sobretudo em tempos de disputas comerciais acirradas que exigem uma competitividade classe mundial de seus propensos participantes.

A norma não faz qualquer menção ao termo “habilidade”, citada na ISO 9001:2000. Isso não chega a fazer falta, uma vez compreendido que a habilidade é a competência relacionada ao “saber fazer” ou seja, competência prática, igualmente suprida em processos de treinamento, a que se refere esta norma.


Capítulo 2 Referência normativa

A única referência é da NBR ISO 8402, revisada como NBR ISO 9000:2000.


Capítulo 3 Termos e definições

Aqui são definidos os termos “competência” e “treinamento”, faltando as expressões “habilidade” e “educação”, ambos também de interesse dos usuários.


Capítulo 4 Diretrizes para treinamento

Neste capítulo estão as prescrições recomendadas para a implementação de um processo de treinamento planejado e sistemático que pode dar uma importante contribuição para a organização atingir seus resultados.

Apesar de ser previsto um processo de monitoração, a norma relaciona quatro estágios para o desenvolvimento de um programa de treinamento:

  • definição das necessidades de treinamento
  • projeto e planejamento do treinamento
  • execução do treinamento
  • avaliação dos resultados do treinamento

O ciclo a seguir demonstra como se encadeiam os 4 estágios além do processo de monitoração.




Figura 2: modelo de processo de treinamento


Cada um dos estágios do processo de treinamento é descrito na norma. Aqui também são dadas diretrizes para a contratação de serviços de treinamento e feitas menções sobre a participação das pessoas em geral, visando obter um o sentimento de co-autoria, indispensável para o sucesso do programa de treinamentno.
Quanto a responsabilidade em si, a ISO 10.015 não chega a ser tão exigente como, por exemplo a norma VDA6.1, que delega a responsabilidade pelo treinamento à gerência imediata. Essa responsabilidade, mais aberta, se adequa bem à realidade brasileira, acostumada a presença de um departamento de treinamento bastante atuante.

O primeiro estágio de levantamento das necessidades (ver diagrama) é feito em 6 passos e oferece ao usuário um leque de opções além do já surrado LNT, bastante utilizado pelas organizações Brasil afora.



Figura 3: passos para a definição de necessidades de treinamento

Os passos de descrição de competências necessárias, sua comparação com as competências existentes e a conseqüente lacuna a eliminar, é tratada de forma sucinta, porém agregando bastante ao pequeno trecho no capítulo 6.2.2 da ISO 9001:2000.

A saída do estágio de levantamento das necessidades é parte da especificação do programa de treinamento, descrito no estágio seguinte.

O segundo estágio, que trata do projeto e planejamento do treinamento, descreve o processo de criação do programa, incluindo a identificação de restrições à realização do treinamento, a determinação dos métodos didático-pedagógicos possíveis, a especificação de um programa de treinamento e finalmente diretrizes a seleção do fornecedor do treinamento.


Figura 4: passos para o desenho do treinamento

Acredito que este é o capítulo de maior contribuição para o processo de treinamento para as empresas brasileiras. Habituados a planejar treinamento a partir de programas oferecidos pelas empresas de consultoria, os Analistas de Treinamento terão boas oportunidades para exercitar sua habilidade em determinar conteúdos a serem trabalhados bem como os métodos didáticos mais adequados à cada grupo ou turma. Essa com certeza é uma atitude muito mais pro-ativa, podendo contribuir significativamente para o desenvolvimento de programas muito mais eficazes.

A especificação do programa de treinamento prevista nesse capítulo é um documento extremamente útil durante a fase de negociação do treinamento com as partes envolvidas, servindo também para contratar cursos semelhantes a posteriori.

Uma das informações mais importantes prevista na especificação são os critérios para avaliação dos resultados (avaliação da eficácia), determinada antes, portanto da própria realização do treinamento, e não depois, como tenho visto em muitas empresas. Isso não só é mais coerente como também facilita o trabalho de avaliação posterior, além de prevenir reações adversas com os treinandos ou gerência que solicitou o treinamento. Pense nisso.

O estágio 3 que trata da Execução do treinamento é bastante simples e aborda as atividades de apoio antes, durante e depois do treinamento, objetivando municiar todas as partes com informações e recursos, acompanhar a atividade durante o treinamento e apoio ao final através de recebimento de informações dos participantes e do instrutor. Apesar de sua simplicidade e obviedade, quem nunca se deparou com uma sala suja e desprovida dos recursos que havia solicitado com toda a antecedência do mundo?



Figura 5: execução do treinamento

Quanto ao estágio 4 de avaliação dos resultados, a ISO 10.015 orienta as organizações a executar avaliações a curto prazo e a longo prazo para determinar se ambos, os objetivos da organização e do treinamento foram alcançados, ou seja, se o treinamento foi eficaz.





Figura 6: estágios da avaliação de resultados de treinamento

Uma observação interessante é a premissa de que o treinamento não pode ser plenamente avaliado até que o treinando possa ser observado e avaliado no local de trabalho. Isso sugere que, o que não foi aplicado não pode ser avaliado. Além disso, o texto esclarece de uma vez por todas qualquer dúvida sobre a finalidade da avaliação de reação, aquela que se faz logo após o treinamento, como instrumento de avaliação de eficácia.

A norma cita também a avaliação de aprendizado, que pode ser aplicada na forma de prova teórica, prática ou ambos, como avaliação de curto prazo.
Quanto a avaliação de longo prazo, os critérios devem se basear sobre os resultados em termos de produtividade ou desempenho no trabalho, alinhado portanto às orientações de especialistas em processos de T&D.


Capítulo 5 Monitoramento e melhoria do processo de treinamento

Finalmente, o processo de monitoramento do treinamento, que não faz parte dos quatro estágios, mas que figura como parte integrante do gerenciamento da atividade.

A norma ISO 10.015 recomenda, se possível, a adoção de pessoal independente, sugerindo talvez a realização de auditoria. Isso fica por conta de cada organização. O objetivo é verificar se o processo de treinamento está devidamente gerenciado e implementado de forma a comprovar a eficácia do processo em alcançar os requisitos do treinamento da organização.
Após o monitoramento, um parecer em termos de validação deve ser emitido para aprovar ou recomendar ações para melhoria.
Comentários

A ISO 10.015 é uma norma que deve ser utilizada pelas organizações brasileiras, sobretudo dada a importância do treinamento para o aumento da competitividade empresarial e mesmo nacional. Afinal a competição hoje não é com a empresa do lado, mas com empresas da Coréia, Japão, Alemanha, só para citar alguns.
Defendo inclusive, a adoção maciça da ISO 10.015 a começar pelo próprio governo, numa verdadeira marcha para retirar o Brasil do rodapé da lista de empresas mais competitivas do planeta (Fórum Econômico Mundial, Genebra, 1999 - Brasil: 34o país no quesito Treinamento da pessoa entre 59 pesquisadas).


Possíveis dificuldades

Quanto às possíveis dificuldades para adoção, é impossível deixar de pensar nos enxutos departamentos de T&D. A falta de pessoal, no entanto, não é impedimento para acrescentar anos-luz de melhorias no processo de treinamento, bastando um pouco mais de criatividade e trabalho de equipe.


Benefícios

Os benefícios para as empresas que adotarem a ISO 10.015 de forma efetiva e criativa, respeitando as restrições e realidade da organização, são muitos entre os quais cito:

  • redução do desperdício em atividades mal planejadas ou executadas
  • mais apoio da Direção em termos de incentivo e mesmo verbas
  • aumento da competência do quadro
  • melhoria dos resultados operacionais
  • aumento da credibilidade da atividade e do departamento de treinamento

Evidentemente, benefícios como esses são resultados e um processo de implantação bem dirigido além de persistência para a busca contínua a médio/longo prazo.


Relação com a ISO 9001:2000

Apesar da adoção da NBR ISO 10.015 não ser obrigatória, é recomendada pelo IAF – International Accreditation Forum e pelo Comitê Brasileiro da Qualidade CB-25.
Essa adoção, se feita, atende aos requisitos da ISO 9001:2000 sobre a educação, treinamento e habilidades. O requisito relativo à experiência deve ser atendido através de vivência prática.


Adaptabilidade com outras técnicas e práticas

A ISO 10.015 é flexível e perfeitamente ajustável às técnicas e novidades mais recentes na área de T&D como a Gestão da Competência, ROI – return in investment, Universidade Corporativa, OJT – on the job training, certificação profissional, avaliação 360 graus, auto-formação, etc.
Evidentemente, algumas soluções mais elaboradas devem ser trabalhadas para realidades e situações mais complexas.


Futuro da ISO 10.015

O futuro da ISO 10.015 será determinado nos trabalhos de revisão que já começaram. Acredito que a certificação do processo global do treinamento deve acrescentar à sua utilização uma motivação adicional aos benefícios já descritos.
Acredito que devem também ser feitas adaptações para ajustar o texto às demais normas de gestão de meio ambiente e saúde e segurança ocupacional. Outra opção seria simplesmente tornar a norma mais genérica, sem qualquer direcionamento aos sistemas de gestão, possibilitando sua aplicação ao desenvolvimento de um ambiente empresarial mais competitivo.


Conclusão

O Brasil tem urgência na melhoria de sua competitividade para fazer frente à competição externa. E para isso, bilhões de reais devem ser inevitavelmente investidos nas próximas décadas na preparação de nossa força de trabalho operacional e gerencial. A adoção da ISO 10.015 seria uma forma de garantir a melhoria no gerenciamento desse esforço em escala microeconômica, porém com efeitos macroeconômicos promissores.

Talvez não seja por acaso que na Suécia, um dos países mais competitivos do mundo, a norma ISO 10.015 vendeu nos primeiros sete meses após publicação, 10% a mais que a própria ISO 9001:2000 no mesmo período. Talvez nós estejamos fazendo algo de errado. Ou eles de certo.

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